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Concentração de mercados e desafios para o Brasil

Toda a indústria brasileira está numa encruzilhada

Por Paulo Gala

O desafio da indústria brasileira é conquistar mercados mundiais que, em geral, são muito concentrados. Só assim poderemos atingir a escala necessária para dar os saltos tecnológicos que nos levarão ao progresso. Apenas produzir para o mercado interno não será suficiente.

O fato de termos muitas indústrias multinacionais e menos empresas de capital nacional agrava nosso desafio, pois estas têm resistência em transferir seus centros de pesquisa para o Brasil e usar nosso país como plataforma exportadora. Isso poderia trazer grande volume de empregos de qualidade.

Toda indústria brasileira está numa encruzilhada. Temos capacidades e escala que poucos países emergentes têm no mundo, mas ainda somos pequenos nos mercados mundiais quando comparados a países ricos. Muitas de nossas indústrias dependem ainda de tarifas para resistir nesse universo de grande concentração mundial, não por incompetência nossa, mas por falta de condições de competir da porta da fábrica para fora.

A propriedade de marcas, patentes, processos produtivos proprietários e grande escala cria poder de mercado na mão dos gigantes industriais do mundo que competem entre si, mas deixam pouco espaço a empresas entrantes de países de renda média como o Brasil. No jargão de economistas existem barreiras à entrada nos mercados mundiais que impedem o avanço de nossas empresas nacionais. Trata se de uma competição assimétrica e desigual; para não mencionar o grande custo tributário relativo, elevado custo de capital e pobreza de infraestrutura do país.

Vejamos, por exemplo, o caso da indústria de pneumáticos no Brasil. O setor de pneus e câmaras de ar instalado no país compreende 10 empresas, das quais sete são multinacionais, espalhadas em 20 fábricas. Esses números, por si, já colocam o Brasil como o país com a maior quantidade de fábricas de pneus na América Latina, deixando claro o seu potencial produtivo. Todo esse campo fabril, ao final de 2020, gerava 28,8 mil empregos diretos e aproximadamente 819,3 mil indiretos, contando ainda com uma rede de mais de 4.500 pontos de venda no Brasil. Nesse mesmo ano, foram produzidos aproximadamente 50 milhões de pneus no Brasil apenas para o mercado nacional, sendo exportados outros 11 milhões.

As importações totais, de pneus, por outro lado, somaram 21 milhões nesse mesmo período. Para além do enorme mercado que esses números evidenciam, é visível que somos muito relevantes em termos de produção doméstica. Contudo, mesmo com tal poderio, o país tem participação praticamente irrelevante no mercado mundial, marcando menos de 1,5% do volume total de US$ 80 bilhões desse mercado, o qual se encontra concentrado e dominado por alguns países.

No momento, a indústria de pneus no Brasil se vê em situação delicada graças à decisão de reduzir, de forma unilateral, o imposto de importação de pneus de carga (caminhões e ônibus) de 16% para 0%. Tal medida gerou, de uma só vez, três externalidades negativas: uma escalada tarifária negativa, haja visto que o imposto de importação das matérias primas do pneu é maior do que a alíquota do próprio pneu; imprevisibilidade econômica, dada a velocidade de aprovação e ausência de prazo para a medida e; por fim, uma falta de isonomia entre o produto nacional e importado.

Todo esse cenário é ainda mais agravado, uma vez que ele se instala em um momento de alta nas matérias primas do pneu, tanto pela desvalorização cambial quanto pelo seu preço internacional per se. Com isso, por mais competitiva que a indústria nacional de pneus seja das suas portas para dentro ao produzir os mais de mil tipos de pneus que atendem desde veículos de passeio até máquinas de mineração, uma medida como essa desconsidera fatores econômicos estruturais e suas disparidades regionais ao mesmo passo que reduz o custo do pneu importado no Brasil.

Em um mercado disputado tão agressivamente pelas marcas multinacionais instaladas no país, tornar a importação mais atrativa é um convite à corrosão da indústria nacional. Isto é, para além de não melhorar a posição da indústria brasileira no fluxo de comércio global, o resultado mais provável do corte de tarifas será a interrupção da produção doméstica com transferência para plataformas de produção e exportações em outros países. Essa, inclusive, será apenas uma decisão lógica por parte das empresas multinacionais, mas nós perderemos o potencial de subir na escada tecnológica com futuras aprendizagens como, por exemplo, uma possível retomada da produção de pneus de aviões, dado que já possuímos ampla expertise para produzir todos outros tipos de pneus.

Além disso, também perdemos empregos no Brasil ao mesmo passo em que geramos empregos no exterior com a alta nas nossas importações, as quais registraram, em maio de 2021, o maior volume desde 2012 para pneus de carga. Isto é, cortes de tarifa num ambiente de comércio internacional concentrado apenas transferem produção para outros países que já tem mais economias de escala e minam parques industriais dos países que cortaram a tarifa.

Nesse cenário, quando expostas à concorrência mundial sem proteção tarifária condizente com a realidade brasileira vista da porta da fábrica para fora, nossas indústrias nacionais sucumbem ao poder das gigantes produtoras do mundo que apenas escolhem quais países serão suas plataformas exportadoras. Ao governo brasileiro caberia enxergar isso e turbinar nosso potencial produtivo já existente com redução do custo de capital, melhora de infraestrutura, busca de transferência tecnológica e ganhos de escala na produção brasileira, além do combate ao dumping que sofremos. Não enxergar essas assimetrias e apenas cortar tarifas alegando ineficiência produtiva é fechar os olhos à realidade do mundo empresarial como ele de fato é.

Ao invés de miopia, o governo deveria se esforçar para enxergar mais longe. Poderia, por exemplo, colocar metas de sofisticação tecnológica e conquista de mercados mundiais para empresas nacionais e multinacionais aqui instaladas em troca de tarifas temporárias. Assim fizeram a Coreia do Sul, Japão e China para se tornarem os gigantes que são hoje. Apenas cortar tarifas é uma política pública simples e que não levará o país ao desenvolvimento econômico.

Paulo Gala é professor da FGV-EESP